sábado, 17 de abril de 2010

Muita discussão e pouca ação, os males da cultura são

Muita discussão e pouca ação, os males da cultura são



Basta um pequeno levantamento e uma leitura rápida no que tem sido publicado, nos jornais e revistas, sobre a questão da reforma da Lei Federal de Incentivo a Cultura, para compreendermos que apesar da aparência das divergências, há um ponto em comum entre os que apóiam e os que rechaçam a proposta do Ministério da Cultura: a carência de recursos públicos para o fomento à produção de atividades culturais. Assim, em casa de pouco pão muitos brigam e ninguém tem razão.

Quando o Ministro da Cultura, Juca Ferreira, afirma que “quem tem acesso [à lei] evidentemente não quer perdê-lo. Não quer ter critério público. Não quer critério nenhum” , aponta mais um fato comum nestas discussões – a opinião é modelada pela condição e pela situação de quem fala. O debate, portanto, fica circunscrito entre os que têm certa regularidade no usufruto dos benefícios da Lei Federal de Incentivos à Cultura e os que por vários motivos não conseguem alcançar estes benefícios.

O sistema de apoio à cultura no Brasil, baseado nos incentivos fiscais a empresas privadas, tem como fronteira de entrada (input) a burocracia do Ministério da Cultura, que cadastra, examina e homologa os projetos formulados por empresas produtoras ou instituições culturais; na fronteira de saída (output) estão as empresas privadas credenciadas pela Lei, para patrocinar os projetos homologados pelo Ministério da Cultura.

Como o conjunto das empresas patrocinadoras não reúne o volume de recursos necessários para contemplar todos os projetos aprovados, o sistema falha e há sempre uma inflação de oferta de projetos. Uma solução óbvia, em termos de linguagem de sistema, seria a de criar mais filtros e barreiras na fronteira de inputs, ou ampliar os canais de recepção dos outputs do sistema.

Ora, o Ministério da Cultura, opera com somente dois canais de suprimento para “dotar” a cultura com recursos e dispositivos que contemplem as demandas: a) O mecanismo do mecenato, onde a empresas privadas jogam um papel fundamental na escolha dos projetos a serem beneficiados; b) os recursos do Fundo Nacional da Cultura, cujo “funding”, advém, em sua maior parte, de fonte do orçamento da União. Estes dois mecanismos, somados, não chegam nem a 40% da demanda, sendo que, o mecenato representa mais de 60% desta soma.

Nestas circunstâncias e neste contexto, falar em “critério” é perda de tempo, ou falta de conhecimento do que significa uma gestão sistêmica de programas e projetos. O problema deve ser enfrentado pela resposta duas perguntas: O que está previsto na Constituição Federal, como obrigação do Estado, para a área da cultura? Qual é a condição – que antecede aos critérios – para que uma determinada área, segmento, setor, organização ou pessoa da área cultural receba do Estado recursos a título de fomento, amparo, apoio ou incentivo?

Para a primeira resposta basta uma lida na Seção II, Arts., 215 e 216, da Constituição Brasileira, para vermos que não há nenhuma menção direta a apoio a produtores, empresas ou instituições culturais, o que nossa carta magna diz, e de forma bem genérica, é que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Este texto constitucional é o que dá amparo legal à Lei 8.313/91, alterada pela Lei 9.312/96, que estabelece o Programa Nacional de Apoio à Cultura, que o Ministro da Cultura quer alterar.

Mas a idéia da criação de dois mecanismos complementares – um fundo de fomento à cultura e um dispositivo de incentivo ao mecenato apoiado em mecanismos de incentivos fiscais – é obra do economista Celso Furtado, quando foi Ministro da Cultura, no Governo José Sarney – 1986/1988 -. Na tentativa de organizar o recém criado Ministério da Cultura, Celso Furtado buscou superar os problemas de recursos com um plano que contemplava a parceria com a sociedade civil com “…incentivos à aplicação de recursos financeiros nos distintos campos da atividade cultural, tanto sob a forma de doações e de patrocínio” . Estes mecanismos foram consolidados e oficializados na Lei 7.505, de 2/7/1986 -a conhecida Lei Sarney. Quatro anos depois, no início do Governo Collor, a Lei Sarney foi revogada junto com uma série de medidas que abalaram a já débil estrutura de apoio à cultura.

Quando, ainda no Governo Collor, o Embaixador Sergio Paulo Rouanet assumiu a então Secretaria de Cultura da Presidência da República, tratou de criar um mecanismo legal para garantir recursos para a Cultura. A Lei 8.313/91, que instituiu o Pronac – Programa Nacional de Apoio a Cultura, é assentado nos dois mecanismos que orientavam a Lei Sarney – o Fundo Nacional de Cultura, e a Lei Federal de Incentivo à Cultura. Na mesma direção, em seguida, foi criada a Lei de Incentivo ao Audiovisual.

Todavia, estes mecanismos só ganharam força e um relativo sucesso durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso, após uma série de alterações na regulamentação das faixas de concessão de incentivo fiscal às empresas, no âmbito do mecenato. Se antes, ou seja, na regulamentação original, as empresas só podiam usufruir, no máximo, de 35% dos recursos aplicados em um projeto cultural, a título de renúncia fiscal, com a flexibilização as empresas passaram a usufruir até 100% de desconto fiscal, em determinados tipos de projetos e áreas da atividade cultural, como, por exemplo, cinema, patrimônio, livros, exposições e música clássica. Mas o aparente sucesso deste mecanismo atraiu uma demanda maior que sua capacidade de atendimento. Já em 1998, para cada 1 mil projetos aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, somente 140 conseguiam recursos das empresas patrocinadoras. Já, o mecanismo do Fundo Nacional de Incentivo à Cultura, que tem como base de formação do seu “funding”, uma composição ampla que vai desde recursos do orçamento da União, parcelas dos fundos de desenvolvimento regional, participação na receita da loteria e doações incentivadas de pessoas físicas ou jurídicas, nunca conseguiu angariar recursos suficientes para cumprir sua finalidade precípua: servir de mecanismo para complementar as ações não supridas pelo mecanismo do mecenato. Assim, na verdade, há uma grande diferença entre o montante que é distribuído pela renúncia fiscal entre os projetos selecionados pelas empresas, e os parcos e incertos recursos do FNC. Como conseqüência, desde o início, o mecanismo do mecenato é cobiçado como forma de ampliar o orçamento do Ministério da Cultura. A lógica é a seguinte: se os recursos do mecenato são resultantes da renúncia fiscal eles são, recursos públicos. Em se tratando de recursos públicos é justo que o poder público faça a escolha dos projetos a serem contemplados. Diante de tal quadro, seria um exercício inútil tentar responder à pergunta sobre qual é a condição para que se faça a escolha de um projeto e não de outro. As empresas escolhem os projetos a serem patrocinados sob a ótica da conveniência da redução de custos, via incentivo fiscal, e dos objetivos de comunicação empresarial segundo as leis do marketing. E o Estado, como pode proceder a uma escolha isenta? Eis a dúvida e a desconfiança dos que crêem que a opção do mecenato privado, com recursos da renúncia fiscal, ainda é o melhor caminho.

Entretanto, nenhum dos lados consegue explicar a razão do porquê a área da cultura, e, por consequência, o Ministério da Cultura, como representação administrativa da área, recebe tão poucos recursos se comparado com as demais áreas da gestão pública no Brasil. Também não se consegue explicar, e muito menos explicitar, como, depois de mais de uma década de incentivos fiscais para a cultura, a situação do setor se agrava e a dependência dos recursos do Estado aumenta.

Esta situação endêmica leva a crer que há algo de errado na concepção de cultura que embasa as argumentações dos dois lados do debate. Os dois lados seguem a noção de cultura que foi formulada pelos modernistas, nos anos 1930, onde a cultura foi transformada em alegoria da identidade nacional, tendo o patrimônio histórico e a memória nacional como totens sagrados dessa identidade. Não é por acaso que estas duas áreas são contempladas com mais de 60% dos recursos orçamentários do MinC. Soma-se a isso a assunção do conceito de cultura como instrumento de ação social ou, na linguagem do atual governo, inclusão social – que é tradicionalmente o papel da educação. Dessa forma, as diretrizes orçamentárias são orientadas para a estruturação de programas e projetos que buscam utilizar os recursos disponíveis para as demandas sociais, numa série de ações que se superpõem às ações da educação. Além disso, a prática centralizadora do atual governo atropela as instâncias administrativas da federação – estados e municípios – com projetos paralelos como os Pontos de Cultura, que se superpõem às ações localizadas dos municípios. Na verdade, sob o signo da descentralização, se pratica muita distribuição de recursos e quase sempre com muita dispersão.

Não havendo um conceito claro do que queremos dizer quando falamos de cultura; tendo um Ministério da Cultura com uma delimitação constitucional ambígua e subsumida no conceito de educação; não havendo no campo do Planejamento Público, no Brasil, nenhum aceno para qualquer política de estímulo ao desenvolvimento da indústria cultural, ou, para ser mais amplo, indústria criativa. O debate oscila entre protecionismo de um lado e oportunismo corporativista do outro: neste jogo todos perdem.

Como conclusão, a reforma da Lei Federal de Incentivo a Cultura tem como objetivo único e exclusivo municiar o atual governo, através do Ministério da Cultura, com dispositivos que lhe permitam lançar mão dos recursos do incentivo fiscal para promover ações diretas em projetos selecionados e dirigidos pelo Ministério da Cultura, a partir dos “comitês” onde o governo terá sempre a maioria dos membros. Como a maior parte, em torno de 75%, dos recursos utilizados a título de incentivo fiscal, advém das empresas estatais, é fácil entender porque o Ministro Juca Ferreira tanto quer esta reforma. Ele quer um modo legal de conduzir e dirigir o processo de escolha da maioria dos projetos culturais de forma legitimada, porque, de maneira geral, e o que tem sido feito, de forma indireta, nos concursos destas empresas, controlados por “comitês” controlados pelo MinC.

Resta saber se os representantes das Instituições Culturais, os produtores e os artistas vão se calar diante desta mudança. Se fizermos um balanço nas manifestações publicadas nos jornais veremos que os que estão fora do alcance dos benefícios fiscais, apóiam a mudança porque acreditam que, de alguma maneira, serão beneficiados e os que estão não querem a mudança porque estão certos de que podem perder.

E assim caminha a relação do Estado com a Cultura no Brasil.

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